Estou eu, muito sossegada, varrendo minha porta. Sou daquelas que gosta de limpeza, usa capacho na entrada, tenho horror de pé sujo no carpete, e hoje está chovendo.
Lourdes abre a porta e me chama, rindo e com urgencia. Eu entro e vamos á sacada maldita, o posto de vigia da Lourdes:
-Ó lá, hoje elas voam de rodo....vassoura, na chuva não dá.
Vemos Satanás e Belzebu atracadas uma ao braço da outra, sob o guarda-chuva.
A cena é cômica, ambas se equilibram no salto alto, a ponto de escorregar e quebrar a bunda na ardósia.
Enfim vou explicar. A platéia clama pela biografia curta de Satanás e Belzebu. Paciência então, senta que lá vem história:
Moro num prédio de 3 andares, sem elevador, que tem outro bloco no fundo. O meu apartamento é de frente pra rua, como os outros dois do mesmo bloco, embaixo a Lourdes e no primeiro andar, Dona Berta. No bloco B, os apartamentos são de 2 dormitórios, dois por andar. Os nossos, do bloco A são de 4.
Satanás e Belzebu são nossas vizinhas do bloco B, moram porta a porta uma da outra.
Embora nossos apartamentos sejam maiores, somos consideradas, eu e a Lourdes, pobres. A dupla de cramunhões se acha a última coca-cola gelada do sertão.
Embora elas vivam socadas num dois quartos com 3 filhos uma e dois outra, elas tem carro importado, vestem roupa de marca, carregam intermináveis sacolas de compras e os filhos pra oitocentas atividades extra-escolares.
Só não entra lá é compra de supermercado.
Nossa faxineira, que limpa além das áreas comuns do prédio as casas das amigas do cão, diz, no seu linguajar popular que "lá não se come pra não cagar". Bom, eu já vi isso antes. Pequena burguesia tem outras prioridades, comida e saúde não são. Roupas de marca, sim.
Normalmente eu nem conversaria com essa gente, não sou afeta a conversa com vizinhança. A Lourdes eu já conheço ha tempos, estudamos juntas no colégio. Minha trgédia foi que, ao me mudar pra cá a Satanás me atacou, e como falo espanhol (minha mãe é espanhola) ela se pos a conversar comigo, pois é chilena.
Na primeira conversa, já vi que a coisa não era boa, mas me desviei, educada.
Nas eleições pra presidente, desandou. Era a primeira eleição, e os cartazes e faixas do Serra abundavam por todo o prédio. Embestei. Chamei a Lourdes e fomos ao diretório do PT mais próximo catar material.
Ao verem nossas janelas e sacadas decoradas, as mulheres do diabo, as esposas do capeta entraram em frenesi.
Belzebu me interpelou, quando eu voltava da venda:
- Oi amiga...(o sorriso me assustou. Achei que a maquiagem ia rachar)
Tenho pavor de que me chamem de "amiga", principalmente alguem que não conheço. A enviada do inferno continuou, no seu tom idiota normal:
- Olha, eu e a ...(nome da Satanás) vimos as suas faixas e as da Lourdes e achamos que assim...sabe aqui no prédio todo mundo vota no Serra, sabe...
Eu tenho um demonio tambem, dentro de mim. De vez em quando ele põe os chifres de fora, cresce o rabo, afia os dentes. Minha língua, de repente bifurcou:
- E eu com isso?
Acho que meu tom não foi nada bom, porque ela se enrolou. Pintou aquele medinho de tomar porrada:
- Não, sabe, é que assim, de repente a gente pode ficar meio chateada, sabe...
- Espero que voce não esteja sugerindo que eu e a Lourdes tiremos nossas faixas. Se voce ou alguem fizer isso, chamo a polícia.
- Não, não amiga, não é nada, é que, sabe...
E a ladainha incoerente continuou até que eu, de saco cheio disse tchau e subi.
No dia seguinte, havia uma faixa do Serra atravessada na entrada do prédio.
Eu decidi que aquilo fora longe demais. Fui ao bloco B, virada no bicho-papão. O marido da Satanás é síndico. Ao contrário da mulher, é um homem cordato e calmo,com aquele ar resignado que tem todo marido de megera. Ele foi imediatamente dar ordem ao porteiro pra tirar a faixa, enquanto Satanás espumava pela boca e rolava no chão. Cena digna de "O Exorcista".
Mais tarde, o porteiro com um selinho do Lula colado no paletó, sorriu pra mim e disse:
- Dona, até que agora a gente pode respirar, né mesmo?
Respondi:
- Respira Claudinei, respira. Vamos respirar melhor daqui pra frente.
- Vamo, se Deus quiser. Sou pernambucano. O Brasil precisa é de um pernambucano macho presidente.
Eu ri. Nunca tinha antes atentado ao fato de que Lula era sim, pernambucano. Pra mim ele era paulista, como os milhões e milhões de paulistas que fizeram e fazem esta cidade imensa, de múltiplos sotaques.
|
hahahaha!
Excelente!
:o)